Desglobalização

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Era março de 1947, quando Harry Truman, então presidente dos Estados Unidos, apresentava ao Congresso estadunidense, e ao mundo, as diretrizes de sua política externa, voltada para combater a expansão soviética no mundo. As potências mundiais Estados Unidos e União Soviética, aliadas por conveniência durante a Segunda Guerra Mundial, agora viam suas diferenças cada vez mais contrastantes, e tentavam, em um cenário propício para estabelecimento de uma nova Ordem Mundial, impor seus modelos político-econômicos: o capitalismo e o socialismo.

O mundo, que acabara de superar uma grande guerra e ainda possuía feridas abertas que começavam a formar cicatrizes, encontrava-se a postos de um novo grande conflito. Nem mesmo a criação da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1945, seria suficiente para sobrepor-se a essas diferentes visões ideacionais de mundo. Mundo esse que se via muito otimista com o fim do recente conflito e com a possibilidade de retomar as suas atividades regulares, como o comércio internacional, mas que tomou um banho de água fria com o novo modelo de guerra que se instaurava e passaria a fazer parte do cotidiano por anos: a Guerra Fria (1947-1991).

O comércio internacional e as relações entre os países não deixaram de existir, mas restringiam-se até certo ponto em dois polos: aqueles do bloco capitalista costumavam negociar entre si, enquanto aqueles do bloco socialista faziam o mesmo do outro lado. Alguns, talvez mais pragmáticos, abstinham-se ao máximo desse espectro político-ideológico, mas ainda assim encontravam-se limitados em suas manobras econômicas e diplomáticas em virtude do contexto. Somente a partir de meados da década de 1980 é que se começou a vislumbrar o fim dessa guerra, algo que finalmente aconteceu em dezembro de 1991, com a dissolução da União Soviética.

A partir daí, o mundo deu uma guinada a um novo modelo econômico, deixando de lado a polarização e partindo para modelos mais livres e multilaterais. Vários Blocos Econômicos entraram em vigor logo no início da nova década (Nafta, Apec, Mercosul e União Europeia, por exemplo) e, juntos à criação da Organização Mundial do Comércio (OMC), remodelaram as relações comerciais entre os países. Novos e vários acordos bilaterais também aconteceram sem que os acordos multilaterais fossem prejudicados. O propósito central, já disseminado e estabelecido – ainda que com algumas ressalvas – era o de cooperação econômica e de comércio mais livre e justo entre as nações.

Embora alguns países, por razões diversas, mantivessem certas políticas protecionistas, os níveis de comércio internacional aumentaram substancialmente. As compras e as vendas internacionais passaram a ser rotina, e o mundo tornava-se cada vez mais interdependente. Nesse processo, certamente algumas economias se industrializaram mais do que outras, e políticas inclusivas e de fomento foram implementadas por Organizações Internacionais para equilibrar as relações e manter o fluxo global de comércio.

Enquanto tudo isso acontecia, meios de comunicação e de transporte tornavam-se mais tecnológicos e acessíveis, permitindo não só mais agilidade nas negociações e no trânsito das cargas, mas que também houvesse uma maior integração social e cultural entre diversos países e pessoas. E isso seguramente favoreceu o aumento da demanda por produtos e serviços e mudou os antigos hábitos de consumo de várias populações: agora era ainda mais fácil para uma pessoa conhecer e querer coisas diferentes de outro país, seja por ter visto isso na televisão ou na internet ou mesmo presencialmente, em uma visita a um país novo.

Nesse mesmo sentido, as empresas, fossem elas públicas ou privadas, também passaram a enxergar mais possibilidades para ampliar e otimizar seus negócios. Começava, então, o processo de internacionalização em massa de empresas de vários países, que perceberam a possibilidade de alcançar novos públicos com seus produtos, quer fossem matérias-primas quer fossem produtos finalizados. Algumas empresas foram além dos “simples” processos de importação e exportação e tornaram-se multinacionais, estabelecendo até mesmo fábricas em outros países, tanto para atender o público de lá quanto para explorar mão de obra e custos de produção mais baratos. E à medida que esse processo se consolidava, um ciclo de retroalimentação se formava, e tornava-se cada vez mais comum conhecer e conviver com produtos e pessoas de outros países, entender outras culturas e visitar outros países. E, ao mesmo tempo em que esse fluxo de produtos aumentava, crescia também o volume de informações provenientes de diversos lugares – por vias como a internet e a televisão.

A tudo isso, e mais um pouco, deu-se o nome de Processo de Globalização. Talvez as imagens que mais consigam representar o que é Globalização sejam aquelas que possuem um mapa-múndi com várias setas ou linhas conectando diversos países entre si. Porque a Globalização é isso. Globalização é interdependência, é interação em diversos níveis, é desenvolvimento dos meios de transporte, é inovação nos meios de comunicação, é acessibilidade, é integração de mercados, é movimentação de pessoas e encontro de culturas, é expansão econômica, é encurtamento das distâncias geográficas, e é um monte de coisa mais.

A Globalização se consolidou, embora o Processo de Globalização seja uma constante. Afinal, inovações continuam acontecendo nos meios de comunicação e de transporte, assim como novos modelos de integração econômica são continuadamente criados. No entanto, a Globalização tem vivido agora o seu momento mais crítico nessas três décadas de existência. Não seria exagero pensar que talvez daqui alguns anos escreveremos sobre o Processo de Globalização como um surpreendente fenômeno que desenhou o modelo econômico e que viveu em plena ascensão por quase trinta anos. Talvez descubramos, em pouco tempo, que o Processo de Globalização continua acontecendo, ainda que tenha passado pelo seu primeiro grande momento crítico no início da década de 2020. Qualquer que seja a realidade no futuro, muitos já nomeiam o atual cenário como “Processo de Desglobalização”.

O prefixo “des” em “desglobalização” já nos dá uma ótima dica do que é esse fenômeno. Enquanto há mais integração na Globalização, há menos na Desglobalização. Enquanto há maior interdependência na Globalização, há menor na Desglobalização. Mas para entender por que isso está acontecendo, precisamos analisar três importantes e recentes acontecimentos no cenário internacional, que ocorrem em sequência e simultaneamente: a Guerra Comercial entre Estados Unidos e China, a Pandemia de Covid-19 e a Guerra entre Rússia e Ucrânia, com destaque para esses dois últimos.

O primeiro item, Guerra Comercial entre Estados Unidos e China – as duas maiores economias mundiais e altamente interligadas –, é importante por ter transmitido os primeiros indícios de um recente retrocesso da Globalização. Não há de se entrar nos detalhes, mas a Guerra Comercial, iniciada com a imposição de tarifas extras e com a proibição de importação de alguns produtos, pelos dois lados, logo confrontou os princípios da ordem econômica globalista. Afinal, de que adianta formar cadeias de produção e distribuição interligadas se há barreiras para se praticar isso? Os efeitos são a criação de uma lógica nacionalista e protecionista, justamente o contrário do que preza a Globalização.

Mas talvez tenha sido a pandemia o principal fator para colocar a Globalização em xeque. Ainda em maio de 2020, o The Economist lançou uma matéria intitulada de “A Covid-19 matou a globalização?” (Has covid-19 killed globalisation?, em inglês). O principal argumento talvez tenha sido o de que o fluxo de pessoas, comércio e capital seria desacelerado em função da pandemia e que isso representava um forte golpe nos pilares da Globalização. Mas a crescente ideia de reshoring – que é o oposto de offshoring, e envolve o retorno da produção e fabricação de mercadorias para o solo nacional – talvez tenha sido o maior impacto para a Globalização.

No momento em que os países, afetados pela pandemia, começaram a precisar de mais insumos relacionados à saúde, eles também puderam perceber o quanto estavam dependentes de outros mercados para tal – o que não era uma preocupação até então. A engrenagem do comércio internacional girava com tanta fluidez que a localização geográfica de matérias-primas, fornecedores e consumidores era quase que irrelevante. Só que a partir do momento em que os principais fornecedores passaram a reduzir as exportações para abastecer o próprio mercado interno, os importadores sentiram a escassez. E, então, passaram a querer ou que suas multinacionais voltassem para o território nacional ou que indústrias nacionais fossem construídas para abastecer o país. Essa lógica, que começou a partir de itens relacionados à saúde, logo se expandiu para outros itens, desde alimentos até tecnologia.

Por fim, a Guerra entre Rússia e Ucrânia chegou para dar o mais recente golpe na Globalização. Em um mundo já saturado pela pandemia e pela crise econômica dela decorrente, a Guerra acelerou ainda mais o Processo de Desglobalização. O conflito armado foi além dos aspectos de segurança nacional, que envolvem o aumento da desconfiança internacional, a mobilização militar e o armamento antecipado de vários países em prol da defesa e dos interesses nacionais.

A invasão na Ucrânia interrompeu o fluxo de exportações e importações desta, principalmente aquelas por vias aquaviárias, já que a Ucrânia teve que fechar seus portos por questões de segurança. Na Rússia, por outro lado, ainda era possível comercializar, mas as sanções impostas atrapalharam em muito o fluxo de cargas. Como Rússia e Ucrânia são dois grandes fornecedores mundiais de energia e alimentos, respectivamente, o mundo logo sentiu os impactos do conflito, e as preocupações com Segurança energética e Segurança alimentar cresceram.

Segurança energética e Segurança alimentar possuem o sentido de ofertar e disponibilizar energia e alimentos para a população de um país a todo momento, em quantidade suficiente e a preços acessíveis. E a partir do momento em que dois grandes fornecedores mundiais interrompem esse fluxo, os países importadores novamente tendem a práticas mais protecionistas, pois não podem mais depender das cadeias de suprimento globais.

Após o colapso do Lehman Brothers em 2008, muitas empresas e instituições bancárias recuaram e reduziram suas atividades, o que o próprio “The Economist” intitulou de “slowbalisation” (algo como Globalização lenta). Agora, após essa sequência e continuidade de três acontecimentos muito sérios, o termo passou a ser mesmo de Desglobalização. Talvez, em todo esse processo, somente os meios de comunicação e o fluxo de informações ainda não tenham sido fortemente impactados, muito embora ainda possam sofrer devido à menor cooperação entre os países e à possibilidade de haver países divulgando menos dados e informações públicas a partir de agora.

Ainda não se sabe quem vencerá esse duelo entre Globalização e Desglobalização. Mas, a partir de tudo isso que está acontecendo, já é possível imaginar uma reconfiguração do sistema internacional nos próximos anos. O processo de desglobalização é catalisado por acontecimentos críticos como esses e, portanto, vai se desdobrando quase que automaticamente. Muito importante para a Globalização, por outro lado, é a insistência na cooperação entre os países e o encerramento daqueles processos que aceleram a Desglobalização.

 
Autor: Eduardo Melo Vidal
(Bacharel em Relações Internacionais pela PUC Minas; especialista em Comércio Exterior e Negócios Internacionais pela PUC Minas; mestrando em Ciência Política pela UFMG; Professor; Consultor).

REFERÊNCIAS

THE ECONOMIST. Available in: <https://www.economist.com/leaders/2020/05/14/has-covid-19-killed-globalisation>

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